Foto: Flipocos/Divulgação

Valter Hugo Mãe em Poços de Caldas: “Aproximação do livro é empoderamento”

Data da Publicação:

02/05/2025

Poços de Caldas, MG – Um dos maiores nomes da literatura portuguesa da atualidade, o escritor nascido Valter Hugo Lemos em Angola e criado em Portugal, adotou o sobrenome Mãe por um motivo especial: essa é a figura com maior capacidade de amar. Vencedor do Prêmio Literário José Saramago com o remorso de baltazar serapião, reverenciado pelo próprio Saramago como um “tsunami literário”, Valter Hugo Mãe está em Poços de Caldas onde cumpre extensa agenda na programação do Flipoços 2025.
Ele é um dos destaques do Flipoços. Escritor, editor e artista plástico, cursou pós-graduação em Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea na Universidade do Porto. Possui livros publicados de poesia, contos e narrativa longa. Em 2007, atingiu o reconhecimento público com a conquista do Prêmio Literário José Saramago com o seu segundo romance, o remorso de baltazar serapião. Seus quatro primeiros romances são conhecidos como a tetralogia das minúsculas: todos os livros, incluindo o nome do autor, foram escritos sem letras capitais. Seu objetivo foi valorizar a natureza oral dos textos e reaproximar a literatura do pensamento.

É a sua primeira vez em Poços?
Valter Hugo Mãe: Eu julgo que sim. Eu tenho a sensação que eu passei por aqui correndo, mas eu não tenho propriamente memória disso. Estou declarando que é a primeira vez. Talvez seja mentira, mas enquanto ficcionista estou habituado à mentira.

Você já é habitual no Brasil, costuma vir bastante para o Brasil, principalmente para eventos como esse. O que você considera sobre a importância desses eventos para a divulgação da literatura e do seu trabalho?
Valter Hugo Mãe: Eu acho os eventos literários fundamentais. Eu estou cada vez mais convencido que este tipo de evento manifesta o levantamento das comunidades, das populações, digamos assim. Quanto mais as pessoas tiverem a oportunidade de se aproximar do livro mais isso manifesta um empoderamento que, eventualmente, as levará a uma cidadania mais consciente e a história mostra muito isso. A história mostra que os povos mais longevos foram os povos que dominaram as bibliotecas e que imprimiram, por exemplo. Não é por acaso que enquanto o Brasil foi colônia portuguesa estava proibido de imprimir. A impressão, e no fundo a escrita, estavam nas mãos de um prepotente dominador. A liberdade e o empoderamento pressupõem esse acesso ao pensamento e à divulgação do pensamento. Então esses eventos, para mim, significam o povo levantando-se, significam que as pessoas estão eventualmente mais próximas de uma cidadania efetiva e mais afastadas de uma submissão, inclusive de uma dimensão meramente consumidora e isso interessa-me muito, interessa-me que as pessoas sejam prestigiadas com a cidadania ao invés de humilhadas com o consumo.

E você gosta de estar com o leitor, gosta de estar com o público, ou é um desafio, um exercício para o escritor, cujo ofício é solitário?
Valter Hugo Mãe: Eu tenho essas duas coisas. Eu sou um pouco tímido, sobretudo eu fui muito tímido. E agora eu sou um tímido disfarçado. É como se eu pintasse o cabelo, eu criei, assim, uma cosmética e consigo sobreviver em sociedade, digamos. Mas a minha natureza é muito solitária e meio reclusa. Quando eu preciso de escrever, eu fico fugindo porque eu distraio com tudo, sinto que o livro me escapa por todos os motivos. Às vezes até eu próprio sou irritação suficiente para que o livro não aconteça, não dê para escrever porque eu sou sozinho já sou uma multidão, já sou complexo suficiente para atrapalhar tudo. Mas depois eu tenho essa coisa de também gostar muito de encontrar as pessoas. Minha experiência é muito grata, eu encontro leitores que, de fato, me acarinham muito e tornaram-se até fundamentais para que eu possa criar essa outra dimensão que se sobrepõe à timidez e a essa propensão natural para estar sozinho. Então, eu gosto mesmo muito desses eventos, vou sempre muito cheio de livros, compro muitos, gosto sempre de ver o que está sendo publicado em outros países e nas diversas regiões. O Brasil é um país muito grande, o que acontece em Poços pode não estar a acontecer em mais lugar nenhum e, às vezes, eu encontro autores de que gosto e que até começo lendo bem antes de o país inteiro estar lendo. Eu lembro, por exemplo, da primeira vez que encontrei a Carla Madeira, ela publicada apenas em Minas, numa editora muito bonita, mas humilde e quando ela estourou e virou assim um caso muito popular eu já estava careca de saber quem ela era, já tinha lido, já tinha entendido e já estava à espera de que ela tivesse uma dimensão nacional. Então esses eventos são perfeitos para eu ficar catando as coisas que me podem interessar.

Você falou sobre a diversidade e a grandeza do Brasil, já disse também em outras entrevistas que o Brasil é muito importante para você. O que é que tem de Brasil na obra de Valter Hugo Mãe?
Valter Hugo Mãe: Tem muita coisa. Talvez não seja imediatamente perceptível, mas tem, sobretudo, um certo despudor. Não estou dizendo que os brasileiros sejam despudorados, mas é um despudor em relação à língua que, para mim, enquanto português criado em Portugal não seria expectável. E isso acontece no meu trabalho porque muito cedo eu entrei em contato com autores brasileiros. Quer literários, quer musicais. A música foi muito importante para mim, as telenovelas que eu, em criança, via em família. A gente não perdia nenhuma novela todos os dias. Havia uma novela que passava na televisão nacional e que era uma coisa assistida mais religiosamente que a missa. Desde a estreia de Gabriela, O Casarão, O Astro, Água Viva, Dancin’ Days e depois novelas mais recentes como Cambalacho, Guerra dos Sexos, com a Fernanda Montenegro… A gente via a Beth Faria, o Tony Ramos, a Elizabeth Savala. E ainda hoje quando vejo qualquer coisa com a Elizabeth Savala e tenho assim uma nostalgia porque ela era uma figura muito preponderante de uma novela, que era Pai Herói, ela fazia par com o Tony Ramos e nós queríamos muito que eles fossem felizes para sempre. Num mundo perfeito, para mim, a Elizabeth Savala seria casada com o Tony Ramos até hoje. Eu acho um pouco absurdo que os atores não cumpram o destino das novelas (risos). Mas isso tudo está na minha obra, essa predisposição para escrever de um jeito que não é iminentemente português. Que é na língua portuguesa, mas é um jeito meio mestiçado, meio mesclado e que vem sobretudo da influência do Brasil. É curioso porque eu nasci em Angola, mas eu não tenho memórias de Angola, eu era bebê quando cheguei a Portugal e a cultura angolana não entrou, era muito mais difícil, mais opaca. Acho que eu acompanhei o Brasil porque o Brasil, de repente, inundou a cultura portuguesa. Havia um esplendor brasileiro, o levantamento de uma cultura que vinha desde a bossa nova, toda a música brasileira que se impõe no mundo, não só em Portugal, com Tom Jobim, com tudo que vem da Tropicália, então eu acho que minha aproximação com o Brasil também tem que ver com a minha necessidade de entender que a minha identidade é um pouco dali, mas também é um pouco do outro lado do mar. Tinha um oceano no meio da minha identidade e alguma coisa precisava de chegar do lado de lá dessa água. O Brasil era muito mais emissor que Angola. Então eu sei que, se calhar, até tragicamente para a minha costela angolana, eu acho que sou bastante mais brasileiro que angolano. Nasci lá, mas acho que a minha formação é muito mais próxima do Brasil.

E como é ver esse futuro com os pés em 2025, na era da pós-verdade, das redes sociais, dessa cegueira branca, como disse Saramago lá em 95?
Valter Hugo Mãe: É desolador. Eu, no meu tempo de profundamente esperançado na humanidade, cheguei a dizer que achava que o Brasil finalmente era um país de uma cidadania madura, que eu achava que o brasileiro já não se deixaria capturar por determinadas coisas. […] A tragédia do Brasil também potenciou uma cultura que é muito ímpar, você tem muitas poucas nações no mundo com 200 anos de autonomia que conseguem maturar uma literatura, uma música, a criatividade no Brasil é exuberante, produz dos melhores pensadores do mundo, das pessoas mais brilhantes, mais inspiradoras e das mais necessárias, inclusive. Ao mesmo tempo em que aqui é o território onde tudo pode acabar também é o lugar onde aparecem as figuras que melhor apontam maneiras de recomeçar, como Ailton Krenak, Nêgo Bispo, Bispo do Rosário, a maneira como arte dele opera é tudo ainda muito seminal, muito fertilizador, enquanto que o pensamento europeu é um pensamento já necrófilo, apocalíptico, em que a gente está no máximo tentando respirar nos escombros. O Brasil ainda não é escombros, ainda é natureza, ainda é fertilidade, e talvez por isso esteja na mira em relação a todos os abusos.

Você é muito fatalista em relação a Portugal…
Valter Hugo Mãe: Eu sou fatalista em relação a tudo. […] Eu tenho muita esperança, mas cada vez mais numa espécie de poética que possa ser inaugurado do que propriamente nas pessoas que existem. Eu acho que as pessoas que existem já deram muito erro. Estou à espera de figuras novas, quero muito ver pessoas novas.

E o que está achando do Flipoços?
Valter Hugo Mãe: Eu estou adorando. O lugar é perfeito, é lindo, o jardim é maravilhoso, encontrei uns livros que eu queria e não tinha em outros lugares, as pessoas têm sido incríveis e sempre tem isso, eu tenho a sensação de que em cada canto eu encontro um leitor que se torna amigo, leitores que lidam comigo com muita proximidade e isso é muito gratificante. Dei um giro e sempre tem alguém que reconhece.

 

Leia Também

Foto: Paulo Vitor/Mantiqueira

Caldense começa neste domingo busca pelo retorno para a elite de Minas

Poços de Caldas, MG – A Caldense estreia neste domingo (4), às 10h, no Campeonato Mineiro do Módulo II, em confronto contra a Patrocinense no Estádio Ronaldão, em Poços de Caldas. A partida marca o início da caminhada da equipe…
foto-projetos-alcoa-02-05-25

Alcoa reúne proponentes de projetos e reforça compromisso com o incentivo local

Poços de Caldas, MG - Nesta semana, a Alcoa Alumínio S.A. promoveu um encontro especial com proponentes de projetos culturais e esportivos incentivados pela empresa em Poços de Caldas. O evento reuniu representantes da empresa, da Secretaria Municipal de Esportes,…
Foto: PMMG/Divulgação

Furto de fiação telefônica é flagrado pela PM em Poços de Caldas; autores são presos

Poços de Caldas, MG - A Polícia Militar de Minas Gerais, por meio da 162ª Companhia PM, prendeu em flagrante, na manhã desta quinta-feira (2), dois homens suspeitos de furtar fiação telefônica na Avenida Dr. David Benedito Ottoni, no bairro…
Foto: Divulgação

Justiça autoriza continuidade das obras de revitalização na Avenida João Pinheiro

Poços de Caldas, MG - A Prefeitura de Poços de Caldas está autorizada a dar continuidade às obras de requalificação urbana na Avenida João Pinheiro e na Avenida Mansur Frayha, após acordo homologado em audiência realizada nesta terça-feira, na 4ª…
Foto: Flipoços/Divulgação

Eduardo Bueno, o Peninha, participa do Flipoços 2025 com irreverência e paixão pela história

Poços de Caldas, MG - O escritor, jornalista, editor e tradutor Eduardo Bueno — conhecido do grande público como Peninha — foi uma das atrações mais esperadas da programação do Flipoços 2025, em Poços de Caldas (MG). Antes de sua…
Foto: Flipoços/Divulgação

2ª Sessão – Mesa Literatura e Poesia – “Mapa da Poesia – Poços de Caldas

Poços de Caldas, MG - Aconteceu nesta quarta-feira, dia 30, a 2ª Sessão – Mesa Literatura e Poesia – “Mapa da Poesia – Poços de Caldas” – Trata-se de uma coleção de livros para crianças e jovens, criada pelo escritor…

Login de Assinante

Ainda não é assintante?

Ao se tornar assinante, você ganha acesso a matérias e análises especiais que só nossos assinantes podem ler. Assine agora e aproveite todas essas vantagens!